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Incentivos que geram bons resultados

Postado em 23 DE maio DE 2024
Crédito: Reprodução | Trecho da carta enviada à SP Leituras em que Ronaldo atribui seus resultados ao trabalho realizado pelas equipes do SisEB, Remição em Rede, Café Literário e Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de SP

Em carta enviada à SP Leituras, um reeducando da penitenciária de Tremembé revela um desenlace surpreendente alcançado graças às iniciativas do Praler – Prazeres da Leitura em parceria com o projeto Café Literário. Confira!


Em uma carta endereçada à SP Leituras no início deste ano, Ronaldo Ferreira, um paulista recluso há 12 anos e sete meses na Penitenciária II Doutor José Augusto César Salgado de Tremembé, compartilha uma conquista notável: sua performance na prova de redação do último Enem. "Vi pela TV que apenas 60 pessoas no país tiraram a nota máxima, o tão sonhado mil. Eu, por 'apenas' 60 pontos não cheguei a esse feito. Consegui 940! Foi a minha melhor nota na vida", avalia.


Segundo informações do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a última edição do Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade (Enem PPL) teve 84.169 inscritos, o maior número desde 2015. Para Ronaldo, que afirma ter passado mais de 20 anos sem ler um único livro, essa proeza só foi alcançada graças aos clubes de leitura organizados dentro dos portões do presídio pelo Praler - Prazeres da Leitura: "quero reforçar e até provar que incentivos geram bons resultados", destaca.


Clubes de leitura atrás das grades

Criado em 2008 pela Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Pauloo Praler - Prazeres da Leitura visa promover e desenvolver o gosto pela leitura em populações pujantes que vivem em territórios com características de vulnerabilidade social. É realizado em parceria com organizações interessadas em implantar e/ou ampliar ações de leitura e literatura junto a seus públicos. As estratégias de mediação variam de acordo com as necessidades dos grupos-alvo. Há dois anos, o programa gerido pela SP Leituras realizou suas primeiras atividades em parceria com o Café Literário – projeto fundado pelos educandos em privação de liberdade em Tremembé. ""Para 2023, 2024 e 2025, o Praler e o programa Remição em Rede planejaram o projeto com a unidade prisional tendo os clubes de leitura como uma das ações culturais realizadas, com o objetivo de garantir o direito humano à literatura e efetivar a remição de pena pela leitura", explica Giovanna Sant'Ana, gerente de Programas e Projetos na SP Leituras. "Ano passado foram realizadas 18 intervenções, que contaram com 577 participações. Para este, estão previstas outras 18 ações, distribuídas em nove meses, sendo seis deles com a realização dos clubes de leitura e da remição de pena pela leitura", conta.



Uma das ações de Clube de Leitura promovidas pelo Praler no regime fechado na penitenciária de Tremembé (Crédito: Equipe SP Leituras)


De acordo com Eugenio Basso, diretor do Centro de Trabalho e Educação em Tremembé e corresponsável pelo Café Literário, a parceria com o Praler transformou as atividades no cárcere: “Antes, os trabalhos eram realizados de forma empírica, sem método, apenas com boa vontade e esforço para fazer do Café um espaço de troca de informações e posicionamento literário. Após a parceria, os trabalhos foram reorganizados e ganharam qualidade. Adotamos novas práticas, como abordagens diferentes nas rodas de leitura, com perguntas mais abertas à opinião pessoal e ao contraditório”, diz. 


Da remição de pena à descoberta de talentos

A maioria dos reeducandos é atraída principalmente pela possibilidade de redução de pena. No entanto, uma parcela significativa tem incorporado a prática da leitura e já se aventura em produções textuais. "Algumas dessas produções são bastante interessantes e bem escritas, tendo sido premiadas em concursos literários regionais e publicadas em livros coletivos do Folhetim, nosso pequeno divulgador de obras literárias. Também foram redigidas várias peças de teatro, que são releituras bem-humoradas de clássicos literários e personagens célebres, tanto biográficos quanto religiosos. Essas peças cruzam história e cultura popular, o divino e o profano, quase um olhar circense e, por vezes, estereotipado da condição humana e do encarcerado", Eugenio relata.


Um caso emblemático é o de Ronaldo. Além de seu excelente desempenho na prova de redação do Enem, ele já publicou livros independentes e, conforme menciona na conversa a seguir, em breve terá uma coletânea de contos publicada por uma editora. Essa entrevista foi condensada e editada para maior clareza:


SP Leituras (SPL) - Você conseguiu a façanha de atingir quase a nota máxima de redação neste último Enem. A que atribui essa conquista?

Ronaldo Ferreira (RF) - Primeiramente, agradeço à força positiva que rege o Universo. Após reconhecer minha condição de encarcerado em busca de melhoria, coisas boas começaram a acontecer, ou talvez sempre estivessem ali, mas eu não prestava atenção. Tudo mudou quando recebi resposta de uma das cartas enviadas à SP Leituras. Passei a ler mais, conhecer clássicos e usar meu tempo livre para melhorar, mas sem reclamar do Estado ou das condições carcerárias. Zapeando os canais à procura de algo instrutivo, descobri aulas de um professor de inglês [Felipe Dib] e, com autorização dos colegas de cela, antes das 6h da manhã, lá estava eu, caneta e papel na mão, de pé, encarando atentamente as 19 polegadas que me traziam conhecimento. Em volume baixíssimo para não acordar os demais. Fui estudando com o que tinha, me doando e, "coincidentemente”, com o efetivo início do Clube de Leitura na unidade, hoje tenho 940 motivos para agradecer. 


SPL - Qual era a sua relação com os livros e a escrita no passado?

RF - Terminei o ensino médio em 1998, e não estudei mais, simplesmente não lia. Houve um hiato de mais de 20 anos entre um livro e outro, e curiosamente lembro do último, Sozinha no Mundo, de Marcos Rey escritor da série Vaga-Lume dos anos 90 –, foi o último livro que li na pré-adolescência. E depois de preso, foi em A Cabana de William P. Young que encontrei abrigo para a leitura, após décadas. Um colega de cela ganhou o livro e o deixou de lado, mas, atraído pelo embrulho, pedi emprestado e li em dois dias. Desde então, voltei a ler.


SPL - Quantos livros já leu desde então e quais impactaram mais seus dias até aqui? 

RF - Em 2019, descobri-me como leitor e passei a ser conselheiro do Café Literário, começando a ensaiar meus primeiros textos. Desde então, acredito ter lido cerca de 380 a 400 livros. Esses anos foram os que mais dei trabalho para o pessoal da biblioteca. Conheci autores como Dante, Herman Hesse, maratonei aquele russo que "quase ninguém conhece" [Fiódor Dostoiévski], inclusive li Os irmãos Karámazov em 10 dias. Smerdiakov [personagem do livro] ficou zunindo na minha mente por meses. Li Aldous Huxley no original, Brave new world [Admirável mundo novo], e me senti nas nuvens quando conversei por quase uma hora com alguém que havia lido em Português, concordando, debatendo e discutindo pontos de vista. Nunca contei a essa pessoa que eu havia lido a versão em inglês. Outro que me marcou foi Love in the time of the cholera [O amor nos tempos do cólera], de Gabriel García Márquez, em inglês, e durante a pandemia. Impossível não ter feito analogias. Aquele calhamaço de 500 páginas me fez companhia no isolamento.


SPL - Você também se tornou um mediador nos clubes de leitura promovidos pelo Praler dentro do presídio. De que maneira isso aconteceu e como esses eventos têm mudado a rotina e a educação no cárcere, em geral?

RF - Agradeço efusivamente à Giovanna [Sant'Ana]! Eu era persistente em mandar cartas à SP Leituras, e quando realizaram a primeira reunião aqui em fevereiro de 2023, ela me recomendou para o programa Remição em Rede [que realiza clubes de leitura em penitenciárias do Estado de São Paulo]. Coincidentemente, na mesma semana, uma postagem de Monique Malcher teve repercussão, e como eu trabalhava no local das reuniões, acabei me tornando mediador. Com a assessoria do Remição em Rede, procuro evoluir constantemente. A aceitação e empenho do grupo têm sido incríveis. Isso tudo causou uma verdadeira revolução para mim. Ler um livro sempre foi bom, mas agora, ler um livro novo, com aquele cheiro especial e discutir em grupo depois, é indescritível. É como ver sonhos se realizando.


SPL - Seus escritos têm atravessado as grades e já impactaram até mesmo uma premiada escritora, Monique Malcher, vencedora do Prêmio Jabuti 2021 com Flor de Gume (Jandaíra, 2020) – uma das obras doadas pela SP Leituras no projeto Praler. Recentemente, você ainda teve uma crônica publicada pela revista Cult, por meio de uma das oficinas do Café Literário. O que a literatura significa para você?

RF - Aberturas, aproximações, troca de conhecimentos e a confirmação de que escolhi o melhor caminho. Enviei muitas cartas, foram inúmeras tentativas até conseguir algum aproveitamento. Com os clubes de leitura e a paciência de Natalia Terumi [Moriyama, diretora de Difusão Cultural da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo e do SisEB], que leu e compartilhou meus textos com profissionais como Dalton Maziero, Tiago Cfer, e Lana Lim, recebi apoio para incentivar outros a escreverem suas histórias. Em 15 de dezembro de 2023, fui selecionado para compor uma coletânea de crônicas da Fundart de Ubatuba. Um dia antes, recebi um contrato de um grupo editorial de Ouro Preto-MG para publicar uma coletânea de contos sobre infância, Rica infância pobre, que será traduzida para o espanhol e publicada na Argentina. Felipe Dib comentou meu primeiro livro independente, Castanhos, e me ofereceu um curso VIP de inglês, que não posso fazer porque não posso ter acesso ao computador. 


SPL - Qual a importância da experiência de leitura para quem vive em regime fechado?

RF - Ler por ler não é suficiente. Os livros, eles têm de “passar” por nós, temos que nos abrir a eles, permitir que a essência, a mensagem seja absorvida por todos os nossos sentidos e percepções. Apenas após me permitir experienciar a leitura desta forma, é que horizontes mais amplos passaram a se abrir para mim. E tal experiência é gratuita, aberta a todos, indiscriminatória. Quão bom seria se todos, todos os reclusos do nosso gigantesco sistema carcerário pudessem acordar um dia e simplesmente decidir tomar outros rumos. Sei, por testemunho próprio, que alguns tentam. Contudo, a falta de incentivo para o bem, a oportunidade de participar de programas e iniciativas das quais tenho a graça de participar, faz com que eles sigam o curso natural da realidade carcerária. Reincidência e piora. Fujo disso e busco exatamente o contrário. E essa busca, essa virada de chave, têm de ocorrer no regime fechado, o quanto antes. O futuro da pessoa reclusa é resultado das ações e atividades das quais ela se entrega agora, no momento presente. Toda minha gratidão à Adriana Campos, assistente social da unidade, e a Eugenio Basso, que vem abrindo portas, apoiando e incentivando tais práticas intramuros.  


SPL - Um sonho:

RF - A minha utopia é que todos os encarcerados pudessem se engajar e se voltar para a educação, em qualquer uma das suas inúmeras facetas: quer seja aprender um outro idioma, dedicar-se à leitura, ensaiar a escrita ou produção de textos. E, dos 60 estudantes que tiraram a nota máxima no País, que ao menos um (ou mais, bem mais!) pudessem ter a felicidade de conseguir esse feito de dentro do cárcere. Garanto que se houver estímulo, incentivo externo, um dia isso há de acontecer. Eu, sigo tentando.


(Texto: Melissa Lenz)



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